Exercícios de inteligência, bom gosto, sensibilidade é o que me seduz neste conservador assumido, honesto e bom observador.
Para os que gostam de diários, aconselho vivamente:
- No devagar depressa dos tempos, Diários
- Vol. I 1962-1969;
- Vol. II 1970-1993 (Os dias e os anos);
- Vol III 1993-1997 (Diário da Índia);
- Vol IV 2001-2003 (Diário de Paris);
SER EUROPEU É PREFERIR:
- as catedrais às pirâmides;
- Bruges a Quioto;
- o mar Egeu às Caraíbas;
- o sentido estético ao sentido prático;
- as interrogações às certezas;
- o cepticismo ao fanatismo;
- a diversidade à uniformização;
- a dissidência à ortodoxia;
- a liberdade às verdades;
- a sabedoria ao saber;
- a síntese à retórica;
- as palavras às estatísticas;
- a imprensa à televisão;
- a literatura à tecnocracia;
- o indivíduo às massas;
- a lucidez da razão às profecias sem razão;
- as heranças aos testamentos;
- as memórias dispersas à memória única;
- o vinho à Coca-Cola;
- o valor dos homens ao valor do dinheiro;
- a visão de conjunto à visão parcelar;
- a inquietação ao optimismo;
- o sonho à diversão;
- a contradição ao apaziguamento;
- os cafés e esplanadas aos bancos e seguradoras;
- o curso do Danúbio ao do Amazonas;
- Porto fino a Acapulco;
- Santorini a Punta del Este;
- o lago Cuomo ao lago Titicaca;
- a Grécia de Péricles à China da dinastia Han;
- o Império austro-húngaro à Turquia dos sultanatos;
- a Roma imperial ao Japão dos sarnurais;
- o Spectator ao New Yorker;
- Churchill a Indira Gandhi;
- De Chirico e Delvaux a Portinari e Andy Warhol;
- Fellini e Truffaut a Spielberg e Tarantino;
- Malaparte e Yourcenar a John Dos Passos e Kawabata;
- Mouzinho de Albuquerque a Pancho Villa;
- Garibaldi a Sun-Yat-Tsen;
- Marco Aurélio a Confúcio;
- por fim, uma noção equilibrada do tempo, nem estática nem acelerada.
Em suma, a história da Europa à história universal.
(Marcello Duarte Mathias, in Diário de Paris 2001-2003)
Nota: Em vez de Margaret Thatcher escrevi Churchill. Os leitores compreenderão.
Hoje, a pianista Nella Maissa completa 99 anos. Parabéns, e um muito obrigado pelo que tem feito pela divulgação da música portuguesa.
Voltarei a esta efeméride.
José Saramago atribuiu-lhe o primeiro prémio literário com o seu nome. Herberto Helder disse que ele era «o único jovem romancista português que conseguia ler». De escritor-promessa da geração de 1990 a persona non grata do meio literário português, eis Paulo José Miranda. Um ilustre desconhecido, agora a viver no Brasil.
Não há quem não conheça os nomes de José Luís Peixoto, Valter Hugo Mãe, Gonçalo M. Tavares ou João Tordo. Mas poucos, muito poucos, registaram, recordam ou conhecem o nome de Paulo José Miranda e da sua pequena obra-prima, Natureza Morta, que em 1999 foi distinguida com o primeiro prémio literário José Saramago. O que aconteceu então a este poeta e prosador que um dia foi considerado o maior valor da sua geração, o herdeiro de Saramago e Herberto Helder, que hoje não encontra editora para os seus livros? Treze anos depois de ter recebido o prémio com o nome do Nobel, Paulo José Miranda fala pela primeira vez à imprensa.
De dois em dois anos, no outono, quando Pilar del Río anuncia o Prémio Saramago, há sempre alguém que pergunta «o que é feito de Paulo José Miranda?», e há sempre alguém que responde: «Foi para a Turquia, gastou todo o dinheiro em vinhos caros e ficou por lá.» Como não há mais pormenores, a conversa morre aqui e a lenda compõe-se com os detalhes que a imaginação de cada um permite.
Porém, a realidade é outra, e se Paulo José Miranda (P.J.M.) está mais perto do que se supunha, a sua história é mais fascinante do que qualquer ficção que sobre ele se tenha inventado.
Naquele dia de outubro de 1999, P.J.M. estava com a namorada num festival de cinema no Sul da Turquia quando teve uma súbita vontade de conversar com a mãe, com quem não falava há sete meses. Como não tinha dinheiro andou a pedir moedas numa estação rodoviária para ligar de um telefone público. A mãe avisou logo que «andava muita gente atrás dele», mas que só o seu editor, André Jorge, da Cotovia, poderia explicar-lhe a razão. A conversa com a mãe acabou-lhe com as moedas e P.J.M. teve de voltar a apelar à simpatia dos outros viajantes para conseguir ligar de novo para Portugal.
«Está sentado?», perguntou-lhe André Jorge, antes de lhe contar que Saramago e Pilar del Río também andavam à procura dele para lhe anunciarem que tinha ganho a primeira edição do prémio literário. «Andavam todos à minha procura e eu no Sul da Turquia, incontactável durante meses», recorda Paulo numa voz grave mas acolhedora, com um subtil sotaque brasileiro, fruto dos sete anos que já leva de vida no Brasil.
«Compraram-me uma passagem para ir a Portugal receber o prémio. Fiquei poucos dias em Lisboa, conversei vagamente com Saramago. Falei mais com a Pilar. De resto, fazia um ano que ele tinha ganho o Nobel e era ele o centro das atenções. Ninguém me ligou nenhuma. Não dei uma entrevista sequer. Voltei para Istambul e a única diferença foi que trazia mais dinheiro.»
A forma como o escritor gastou o valor do prémio é sem dúvida menos superficial do que a traçada na lenda. Nada de vinhos caros. Com o dinheiro do prémio comprou uma câmara de filmar à namorada, a multipremiada realizadora turca Pelin Esmer que na altura dava os primeiros passos como cineasta. «Com essa câmara ela filmou o seu primeiro documentário com o qual venceu o prémio de melhor documentarista revelação no festival de cinema de Tribeca [Nova Iorque], em 2006», revela P.J.M.
E se hoje Pelin Esmer é uma conceituada realizadora cujos filmes têm na história o nome de Saramago, Paulo José Miranda é um ilustre desconhecido. Afinal abandonou a Turquia, vive há sete anos no Brasil e como todos os que têm o vício da imaginação e o génio da palavra escreve compulsivamente. Poesia, romances, ensaios, que aguardam ver a luz do dia.
Emigrante ilegal e, até há dois meses, totalmente indocumentado (a validade do passaporte expirou em 2005, pouco depois de chegar ao Brasil, e o bilhete de identidade tinha caducado em 1997), P.J.M. sobrevive dando ocasionalmente algumas aulas particulares de música. Viveu no Rio de Janeiro, São Paulo e agora em Curitiba. Apesar das precariedades do quotidiano, voltar a Portugal é algo que o «aterroriza».
O poeta mexicano Octávio Paz escreveu sobre Fernando Pessoa: «Não há revolta na sua vida. Apenas uma mágoa parecida com desdém.» Esta frase também podia tê-la escrito sobre Paulo José Miranda.
Hoje em dia os seus livros só se encontram em alfarrabistas ou na Feira da Ladra. Trocam-se como pequenas preciosidades entre os seus admiradores. E não são poucas as obras que publicou entre 1998 e 2008. Estreou-se com o romance Um Prego no Coração (faz parte da trilogia que inclui O Vício e Natureza Morta). No mesmo ano, lança uma das mais belas e inesquecíveis peças da nova dramaturgia portuguesa, O Corpo de Helena, em que recupera a voz do herói mítico Agamémnon, e um livro de poesia, A Arma no Rosto. Nos anos seguintes lançou outra obra poética, O Mal, e aforismos sob o título América.
Só em 2011 volta a editar um romance, Com o Corpo Todo. Passou anos a enviá-lo sem sucesso para chancelas e responsáveis editoriais portuguesas até conseguir ser aceite pela Ulisseia (grupo Babel). O livro chegou às livrarias no mês de julho e passou praticamente despercebido. O escritor que fora a promessa dos anos 1990 não parecia interessar ninguém ou quase.
Como se falasse de uma coisa que só vagamente lhe interessa ou lhe pertence, P.J.M. explica que no mês em que o livro saiu o editor deixou a Ulisseia. «Não houve qualquer promoção, não recebi sequer os exemplares a que tinha direito, não sei nada sobre o percurso da obra. Vendeu muito? Vendeu pouco? Nunca me disseram nada.»
O poeta perdido no Brasil
Se há um galardão que, na última década, tem servido para alavancar a carreira de vários escritores e garantir a internacionalização da sua obra é o Prémio José Saramago. Mas Paulo José Miranda é o único que não pode contar essa história. Não consegue editar os seus livros e diz que é ostensivamente ignorado pelosmedia portugueses.
«Para mim, Paulo José Miranda é o melhor escritor de todos os que receberam o Prémio Saramago», afirma Vasco Luís Curado, um dos novíssimos autores e finalista do Prémio Leya. «As narrativas dele têm uma carga e uma intenção poética, quer ao nível da ação quer da linguagem, que o tornam incomparável. Nada ali é gratuito ou para entreter.»
Com o Corpo Todo é um romance violento, sem concessões. A angústia das narrativas que escreveu nos anos 1990 converte-se em dureza. A poesia está lá mas muda de tom. A realidade continua a ser algo de inacessível às personagens e aos leitores, mas é como se P.J.M. tivesse desistido da ideia de redenção e tivesse assumido que o desterro é a condição do humano.
«Admiro muito a coragem de P.J.M. ter conseguido transformar tão radicalmente a sua escrita», diz ainda Vasco Luís Curado. «A maior parte dos escritores não tem essa coragem e fica a tentar repetir-se, para continuar a agradar a editores e leitores ou porque não sabe fazer mais.»
«Eu escrevo. É isso que eu faço», afirma P.J.M. com a tranquilidade de uma evidência. «Não escrevo aquilo que os editores querem publicar, não escrevo para as massas. Além disso estou longe. Estou fora do circuito. Sempre estive.»
«Conheci o Paulo quando ele foi meu aluno no curso de Filosofia», conta António de Castro Caeiro, professor de Filosofia e Grego na Universidade Nova de Lisboa, melhor amigo do escritor. «Apesar de ser um aluno brilhante ele não é um filósofo, é um poeta. Não só no que escreve mas também no que é. No nosso meio de amigos ele é conhecido como "o poeta".»
Este desligamento de P.J.M. aos constrangimentos do quotidiano e as circunstâncias difíceis da sua vida são contados por Caeiro com um encolher de ombros e um sorriso. «Ele é mesmo assim. É um poeta.»
«Quando o visitei no Brasil ele raramente saía de casa. Não tinha documentos. Mal tinha dinheiro para comer. Apenas escrevia. Fui eu e um amigo que o levámos a conhecer a cidade onde ele vivia», diz com uma gargalhada. «Ele é mesmo assim. É mesmo um poeta», repete, como se estas palavras fossem o retrato mais preciso de P.J.M.
Paulo José Miranda nasceu em Lisboa em 1965, cresceu em Paio Pires, no Seixal. Começou por estudar música. Foi aluno do Hot Club e teve uma banda punk. Toca todos os instrumentos mas a sua especialidade é a guitarra-baixo. «A música foi a minha vida até perceber que não seria tão bom como queria», recorda. «Quando percebi isso, deixei-a para trás.»
Tinha 27 anos quando decidiu mudar de vida, 30 quando escreveu o primeiro livro, 34 quando recebeu o Prémio Saramago. Mas nunca saiu da penumbra, embora não tenha passado despercebido num certo meio literário lisboeta que se reunia todas as tarde numa leitaria das Escadinhas do Duque e onde paravam, entre outros, os poetas António Cabrita e Herberto Helder. Nunca deu uma entrevista. Nunca escreveu crónicas em jornais nem apareceu em programas de televisão. Porquê? «Porque nunca me convidaram», responde com alguma indiferença.
Quase anónimo, quase celebridade, P.J.M. regressou a Portugal em 2003 depois da rutura com a cineasta Pelin Esmer e com o seu editor de sempre André Jorge (Cotovia). Continuou a escrever compulsivamente. Mas para ele tal como para as personagens que foi criando a morte torna-se, por vezes, um lugar demasiado atraente. Sobre estes tempos sombrios P.J.M. diz apenas: «Por vezes é preciso morrer para ver melhor. Morrer para renascer.»
Agora em Curitiba escreve, reescreve, toca, reinventa-se. Por necessidade, por fatalidade. Áurea, a nova companheira, é advogada e ajudou-o a tratar da documentação. «Agora até já tenho o Cartão de Cidadão», diz, rindo.
Numa estranha coincidência, quando a Notícias Magazine preparava esta entrevista, Paulo recebeu a proposta editorial mais prometedora dos últimos anos: Gonçalo Bulhosa, da editora Oficina do Livro, queria editar não só os seus novos romances como reeditar toda a obra anterior. Filhas, que chegou às livrarias no início de julho, é o romance que promete abrir a nova fase da vida de Paulo José Miranda e, quem sabe, colocá-lo definitivamente nas rotas literárias dos portugueses, porque afinal, como ele próprio escreveu um dia, «só sofremos de amor e de uma obra por cumprir».
Joana Emídio Marques
O soldado sobraçou-o pela ilharga e ele, empertigando-se todo,
prosseguiu no caminho, Ouviria os pardais chilrear nos telhados. Tal-
vez reparasse que passavam no céu pombas amorosas. O Sol apare-
cera por detrás de nuvens de neve, esfarripadas e veleiras, um instan-
te, dois instantes, e desistira de raiar. Mais dum soprava às mãos
encanhotadas. Tanto a população da serra como a do vale, atraida pe-
lo espectáculo insólito, afluíra à Rua. As mães - costumeira edifican-
te, recomendada aos fiéis como ouvir a santa missinha, acompanhar
o Senhor fora, visitar os encarcerados - vinham com os filhos ao
colo para que, mirando-se com olhos inocentes naquele espelho, se
lembrassem quando dele fossem grandes.
O campo em que haviam montado o patíbulo, encostado à vila,
pertencente a um Manuel Teles, do Prado, estava coalhado de gente.
Quem era novo, tanto moços como moças, grimpara para os castanheiros
e árvores de caroço, que ali havia, e a carga era tal que as per-
nadas dobravam.
O carrasco, que chegara na véspera à noite de Coimbra, passara
a manhã a consertar o cadafalso com o ajudante e um carpinteiro da
terra, que se oferecera de bom grado só pelo regalo de ver o malan-
drim dançar na corda bamba. De resto, nada mais sumário que a for-
ca: um barrote firmado por duas cavilhas ao alto de dois postes de
pinho, com uma sorte de estrado móvel no pé, ao qual teria de subir
o sentenciado no acto de se lhe passar o laço ao pescoço. A corda,
uma corda de encarrar, cedida pela filha do Gomes - a única sobre-
vivente da família -, pendia agitada pelo ventinho de cantaril, tal
o baloiço da barra em trapézio.
As peripécias da execução decorreram como estava previsto.
A um sinal dado rufaram os tambores e, empurrado pelos dois bele-
guins, que eram forçudos, o Pires trepou para o estrado. Mas para lhe
caçarem o pescoço no laço foi obra. O miserável debatia-se com to-
das as veras, ora ladeando, ora refugindo com o corpo à retaguarda,
a cabeça recolhida para os ombros como carneiro marruá. Mas o car-
rasco tinha a experiência daqueles breque festas e respectivas manhas.
Quando menos se esperava, filou o Pires pelo cachaço e, passando-
-lhe a corda, deu o esticão. Em continente o ajudante safou o estrado
ao passo que ele, dum pulo, se bifurcava nos ombros do condenado.
- Dá-me a bagaceira! - disse então para o ajudante.
Este passou-lhe uma cabaça, que levou aos lábios de rosto folga-
zão, lá porque estivesse satisfeito com o fim da funçanata e lhe desse
a gana de zombar do justiçado, ou porque sentisse necessidade de se
temperar contra a cacimba que picava como mil alfinetes. Não bebeu
dois tragos. Rebentou tal motim na turbamulta, gritos, descompassa-
dos, injúrias, objurgações, que se suspendeu interdito. Viu muitos
braços erguidos para ele a ameaçar, muitas bocas escancaradas no cla-
mor, e julgou que era a quadrilha do Pires, consoante fora pregoado,
que investia. A cabacinha, escapulindo-se-lhe das mãos, veio esca-
queirar-se no chão. E, sem se importar mais com o penitenciado que
esperneava, língua de palmo fora da boca, atirou-se abaixo e fugiu.
A cena foi tão rápida como a mão dum homem se abre e se fe-
cha, e quase inconcebível!
Afinal que se havia passado? Nada e tudo. A irreverência do car-
rasco, bem embora se tratasse dum infamíssimo matador, seu desejo
e impiedade geraram a revolta no fundo de respeito, sagrado respeito,
daquelas consciências simples perante a representação pavorosa da
morte. Àquela altura do drama humano não há ninguém que se man-
tenha em seu sangue-frio, que mais não seja pelos reflexos que com-
porta. Muito mais naquele caso em que ao mistério imprescrutável do
destino individual se associava a fera intervenção da lei.
Sua mulher Rita de Jesus, que acoimavam de enganar o homem,
apareceu a reclamar o corpo no acta da execução. E, se bem que um
sorriso sardónico aflorasse aos lábios de muitos dos circunstantes, tal
movimento foi muito apreciado. .
Meteram o cadáver no esquife da irmandade e aos ombros de
quatro homens de boa vontade levaram-no para a igreja. Já ali esta-
vam paramentados o reitor e muitos párocos das freguesias limítro-
fes, Arcozelos, Faia, Freixinho, Carregal, Vila da Ponte, Caria e até de
Pêra Velha e outras igrejas da serra. E, solenemente, celebraram pelo
eterno descanso do executado o ofício de corpo presente, após o que
foi dado à terra no próprio chão da igreja matriz, cobrindo-se a se-
pultura com a lousa que nivela os mortos.
- Quem é?
- Sou eu, compadre! Venho dizer-lhe que tome cautela, está outra vez por cima D. Miguel...
- Compadre...?! Diga o nome...
Gaguejou o visitante. E logo o Espadagão, que andava de pé atrás, pressentindo cilada, correu à janela, no intuito de se inteirar do que havia ou de se evadir. Topou a residência cercada. Deitou a mão à espada, a espada de larga folha e copos à francesa que lhe valera a alcunha de guerra, tinha tantas vezes no sangue dos malhados. Mas já a porta saltava nos gonzos e uma pistola, contando com homem apostado a vender cara a vida, se lhe despejava no peito. Mal ferido, o Justo Leal de Longa, o Chico de Sequeiros, e parece que o Pires, meteram-no no meio e conduziram-no para o monte de Santo Estevão, que fica numa eminência das Arnas, através das ruas desertas e das casas silenciosas – se bem que espreitassem sete olhos dos buracos das fechaduras e pelas reixas das janelas. À frente marchava o coveiro da paróquia, que tinham ido à fina força arrancar da cama. No teso, à luz das lanternas, abriram uma cova, tão funda que o Espadagão coubesse nela de pé. Depois meteram-no dentro e, como quem planta uma árvore, deitaram terra à volta, tendo o cuidado de o deixar vivo com a cabeça de fora.
Arruçava a alba quando o trabalhinho chegou a seu termo. Então os quadrilheiros, depois de queimar uma cigarrada a ganhar tempo que abrisse a manhã, foram pelos morouços de pedra escolher malhas. Cada um volveu com aquela que se lhe afigurou mais a jeito para o chinquilho e, tomando a cabeça do Espadagão por fito, cabeça em que rolavam olhos pávidos e medonhos, dentro das órbitas arroxadas pelo sopro da noite eterna, jogaram aos pontos o mata-bicho de aguardente e rabo de bacalhau, que se propunham ir petiscar a Sernancelhe.
Se o Pires não fora o maquinador de tal atrocidade, pois que o Justo lhe levava as lampas, fora um dos comparsas. No Governo Civil de Viseu assacaram-lhe as culpas todas.
E na manhã de 5 de Dezembro de 1839, quando abria a porta do açougue, uma patrulha que tinha chegado nas envoltas da noite e esperara emboscada num quintal, saltou-lhe ao gasnete e nem sequer o deixou estrebuchar. Transferiram-no para o castelo de Lamego da cadeia de Moimenta, que não oferecia a garantia requerida contra o assalto da quadrilha, planeado como uma operação de guerra e assim anunciado. Mas já foi na Comarca que o julgaram. O juiz, bacharel Joaquim Machado Ferreira Brandão, não só repeliu a grossa peita – por modos uma fortuna – com que pretenderam suborná-lo, como se mostrou imperturbável perante as ameaças de morte que lhe choveram em casa por muitas vias. E o requisitório que lavrou contra o réu foi de tal ordem que os jurados, quer os movesse o medo, quer fossem de índole a ceder à corrupção, não tiveram campo para fugir à inexorável rectibilidade dos quesitos. Foi o Pires sentenciado à pena última.
Debalde o réu apelou para a segunda instância, o seu tanto confiado nos políticos de que fora o homem-lige. A relação indeferiu o pedido de recurso. Tampouco se ergueu o dedo clemente de el-rei. Ninguém terçou armas por ele. Clamava misericórdia no vácuo. Agarrou-se, como derradeiro salvatério, à esperança de que os seus parciais, acaudilhados pelo Minhoto, que andava a monte, investissem com a escolta que houvesse de conduzi-lo ao cadafalso. Um golpe de mão bem urdido, executado por gente audaciosa, podia surtir efeito. Para isso pôs à disposição do lugar-tenente somas avultadas com que desfalcou a fortuna que era de monta. Atrás de umas somas vieram outras e vendeu, empenhou, troquilhou. O problema da sua libertação cavou um sorvedoiro sem fundo. Os seus ficaram na penúria, mas deixá-lo, a questão era poder dar às trancas e pôr-se em Espanha. O Minhoto, que andara a assalariar quantos sicários havia no norte de Portugal, jurava pela luz dos seus olhos que no caminho para a forca havia de ser arrancado das unhas dos soldados ou ele britaria a cabeça contra uma laja. Fiado em tais protestos, foi sem náusea de maior que na manhã de 8 de Maio de 1843 – três anos transcorridos sobre o seu derradeiro crime – vestiu a alva de penitenciado e estendeu as mãos aos anjinhos.
De Moimenta da Beira, pelos Arcozelos, à vila da Rua, onde se faria a execução, são cinco quilómetros bem medidos entre soutos e moitas, altos e baixos de fraco pendor, mas que obrigam a circuitos de certa demora. Estava uma manhã agreste, baça, bastarda duma Primavera peca e serôdia fugida ao provérbio: Em Maio, quem não tem basta-lhe o saio.
O Pires ia descalço, e manhosamente se bem que a reclusão prolongada o houvesse tornado animal flácido e cativo, batia o dente e lastimava-se, manobrando de modo a retardar a marcha.
Um soldado, mais impaciente ou abelhudo, picou-o com a baioneta.
O Pires voltou-se para ele a arruaçar:
- Cão, filho de cão, maldito sejas!
O alferes assentou-lhe por duas vezes a espada nos lombos.
Os cinco quilómetros de caminho levaram tempo imenso a per-
correr. Tanto em Arcozelo da Torre como em o do Cabo, havia
grande concurso de gente. Todos queriam ver o sicário, uns por cu-
riosidade, outros por espírito de revindicta, que a muitos afrontara.
Quis beber e pediu água a uma mulher que vinha da fonte. A mulher
hesitou um instante. E, decidindo-se, chegou o cântaro aos lábios se-
cos, rugosos.
- Deus lhe pague! - rosnou ele.
A mulher entornou o resto da água e girou a enchê-lo de novo
à fonte com visível fisionomia de nojo. Quando deixaram as últimas
casas dos Arcozelos, a escolta redobrou de cuidados. De quando em
quando, pela frente, divisavam-se magotes de povo, e o comandante,
sobreavisado pelos zunzuns que corriam, mandava explorar o terreno
e só avançava quando os batedores lhe vinham com a parte de que
não havia novidade. Mesmo assim as praças marchavam de gatilho
aperrado. Os olhares do Pires de resto eram significativos. A cada
passo, subiam a vertente que alçaprema Nacomba, esquadrinhando
os bosques, fusgando as devesas, na ânsia dum socorro que tardava
a chegar.
Ao alcançar as primeiras casas da Rua, teatro das suas perversida-
des, ia visivelmente sucumbido. As pernas, que estafavam um poldro
na carreira, emperravam-lhe. Em despeito da ,atmosfera álgida, caia-
-lhe o suor pela face abaixo em gordas e pútridas bagadas. O curioso
é que ele a chegar, o burburinho da grande mó de povo amainou co-
mo por encanto. Estava toda a gente hirta e muda, de olhos nele,
e aquela atitude de contenção e pasmo perante o seu calvário gelou-o ..
Uma onda de frio marinhou-lhe pela medula, para se espraiar depois
pelo corpo todo. O comandante da escolta deu conta e vendo-o páli-
do, convencido de que ia desmaiar, ordenou para a praça mais próxima:
- Deita a mão a esse homem!
Depois, para mais agravar a vesânia dos zelos, entremetera-se a pendência política, tendo o amante infeliz disparado uma vez sobre o Pires, sem lhe acertar.
Perpetrado o crime, o Pires continuou, sem embargo dos autos e encoime à boca cheia, como se não tivesse no código uma conta em aberto. Não era homem que por isso faltasse a feiras e mercados, e a onde lhe dava a real gana. Conheciam-lhe o cavalo pelo bater do trote, a descair sobre uma das mãos lesa dum alfaiate antigo, e pelo arreio, sela de campino com xaimel de pele de cabra, e o chumaço das pistolas mal dissimuladas nos coldres. No negócio de comprar e vender reses, umas que abatia, outras que traficava, tanto estava hoje aqui como amanhã em casa do demo. O sentimento da impunidade incutia-lhe uma audácia de mais efeito social ainda que o próprio salvo-conduto, toda a gente se acobardando diante do homem sem medo nem frio nos olhos. As autoridades da comarca, desapoiadas ou temerosas também, faziam vista grossa.
Esse mesmo ano, logo em seguida ao mercado de S. Francisco, porque acabassem os fumos da bebedeira de toldar-lhe a razão ou fosse a altura da sua sanha de cão danado produzir onda, foi depois da ceia bater à porta do velho Luís Gomes, pai do Leandro.
- Quem está lá?
- Praças do Nove de Lamego – respondeu contrafazendo a voz.
- Praças de Lamego…?! A que vêm a esta hora?...
- Aboletar-nos. Vamos num destacamento para Trancoso, e o regedor, a mim e ao camarada que aqui está, destinou-nos esta casa.
O velho mandou a mulher abrir a porta.
Mal esta se escancarou, o Pires e dois sicários seus, Luís Minhoto e Nuno da Silva, caíram sobre eles de facalhão alçado. Nem lhes deram tempo de soltar um ai. O Gomes tombou banhado em sangue para nunca mais se erguer; mas a mulher, ainda que crivada de golpes e tão à beira da sepultura que lhe puseram a extrema-unção, tinha sete fôlegos como os gatos e escapou. De pouco diferiu a sua hora. Estava por uma noite de Dezembro sentada à lareira com sua sobrinha Constança de Jesus a fiar na roca, sentiu bater à aldraba. Schut, ouviste?... Ficaram ambas transidas, o sangue gelado nas veias, a voz presa na garganta. As pancadas repetiram-se a manso, pousadas, em surdina, como quem se penaliza de dar alarme ou despertar gente que dorme. Jesus! Se ao menos tivessem ânimo para gritar?! Mas nem isso. Daí a pouco ouviram rumor no telhado. Perceberam que desviavam telhas no forro, que era de latas e não de escama-peixe. E, sideradas, a cabeça metida no avental, à maneira do avestruz, o Pires e seus quadrilheiros ali as vieram chacinar com o maior sangue-frio, a punhal e à moca, como quem extermina animais daninhos.
Um frémito de horror percorreu a comarca. A taça extravasava. Mas se todos juravam pela pele do facínora, ninguém se atrevia a tocar-lhe com um dedo molhado. Ele, pelo contrário, parecia redobrar de desplante. Além de manter o estabelecimento aberto, com suas amiudadas idas e vindas à vila, mercas e vendas em plena feira, blasonava forte e feio da justiça e das autoridades.
Na capital do distrito, todavia, surda, calculadamente preparavam-lhe a cama. Tinham-no, por fás e nefás, como implicado na morte do Espadagão, tenente da Guarda Nacional, quando este virara a casaca de realista feroz para liberal não menos assanhado. O estilo com que o homicídio fora perpetrado traía a mão do Pires da Rua, mais ponto, menos virgula. A uma hora adiantada da noite, batiam à porta do cacique:
- Ó da casa!
1
Em 1839, por uma manhã tiritante de Fevereiro, destas manhãs estanhadas pelo regelo e o caramelo, com o sol metido lá para a casa de Pilatos, na aldeia de Carapito, ouviram-se a súbitas cinco tiros, ao descoser do caminho para Nacomba. Três homens, de clavina em punho, saltavam os muros das hortas, um olhar torvo e suspicaz à retaguarda, e metiam para os bosques que vestem o sopé dos montes de Caria. No meio da azinhaga jazia prostrado por uma carga maciça de zagalotes um marchante muito conhecido na região, rapaz de vida inquieta e barganteira, nem mais, nem menos este Leandro da Rua. Para maior escarmento e sinal de que o assassino fora obra de alardeada revindicta, os matadores, antes de desparecer, deram-se ao requinte de lhe cortar as orelhas.
A mãe do morto, quando lhe vieram com a notícia, saiu de casa, e desgrenhada, descalça, mãos erguidas ao céu rompeu em altos brados a clamar à d’el-rei contra o Pires – não podia ser outro – que lhe matara cobardemente o filho de sua alma. Ao clamor acudiram os vizinhos e familiares, ali se erguendo grande babaréu que de babaréu não passou, não havendo mais que vozes ao vento.
Entretanto o Manuel Pires, que tinha um talho em Vide, face à Capelinha de Nossa Senhora dos Passos, arvorava, espetadas nos ganchos da loja, ao pé duma cabeça de vitela, as orelhas do Leandro. A quem vinha não se acanhava de dizer:
- Orelheira de porco, não vai? – e acrescentando a bufar: - Hoje pateou este; atrás deste hão-de ir o pai, a mãe, os irmãos todos. Não há-de ficar um para raça.
Assim, em público e raso, gloriosamente, se denunciava o matador. Mas quem se atrevia a erguer mão para a gola da jaqueta do maior bandoleiro que pisava o vale do Távora e terras da Nave, capitão de quadrilha, com muitas mortes às costas, umas de filiação miguelista, outras de celeradez pura e rapinagem?
Naquele ódio à família de Leandro, havia um negócio túrbido de fêmea, uma pécora que se passara do Pires, que era canhestro e reles figura, para aquele, bonito moço e arruador.
Mas quem são os Bárbaros de hoje?, pergunta um de nós. O Inimigo é categoria cada vez menos nítida, menos peremptória: será ele o fundamentalista fanático, o velho estalinista impenitente, o maoista rançoso ou o neofascista atrevido, o croata saudoso de Pavelic ou o sérvio feroz, o comunista implacável no seu desejo de estabelecer o regime da Fidelidade Obrigatória para todos…? A demonologia está a perder-se nestes tempos de inconvicções generalizadas e o próprio Demo, depois de ter sido reabilitado no século passado como um sujeito no fundo aceitável ou até francamente positivo, perdeu-se de vez no nosso século, logo que os delírios estalinistas e nazi-fascistas foram dados como curados pele Europa e pelo resto do mundo.
(João Medina in “Dias calmos em Rhode Island”, 1993)
“CAPITÃO, Ó MEU CAPITÃO”
Capitão, ó meu capitão! A nossa terrível viagem está finda.
O barco resistiu a todas as tempestades, o prémio que perseguíamos está ganho,
O porto próximo, oiço os sinos, as pessoas exultantes
Enquanto seguem com os olhos a nave inflexível, a barca firme e ousada
Mas, ó coração! coração! coração!
Oh, os vermelhos pingos de sangue vertidos
No tombadilho onde o meu capitão está caído,
Caído frio e morto!...
(Walt Whitman)