Literatura, opiniões, memórias, autobiografias, e demais diletantices.
Sexta-feira, 3 de Maio de 2013
4

O soldado sobraçou-o pela ilharga e ele, empertigando-se todo,

prosseguiu no caminho, Ouviria os pardais chilrear nos telhados. Tal-

vez reparasse que passavam no céu pombas amorosas. O Sol apare-

cera por detrás de nuvens de neve, esfarripadas e veleiras, um instan-

te, dois instantes, e desistira de raiar. Mais dum soprava às mãos

encanhotadas. Tanto a população da serra como a do vale, atraida pe-

lo espectáculo insólito, afluíra à Rua. As mães - costumeira edifican-

te, recomendada aos fiéis como ouvir a santa missinha, acompanhar

o Senhor fora, visitar os encarcerados - vinham com os filhos ao

colo para que, mirando-se com olhos inocentes naquele espelho, se

lembrassem quando dele fossem grandes.

O campo em que haviam montado o patíbulo, encostado à vila,

pertencente a um Manuel Teles, do Prado, estava coalhado de gente.

Quem era novo, tanto moços como moças, grimpara para os castanheiros

e árvores de caroço, que ali havia, e a carga era tal que as per-
nadas dob
ravam.

O carrasco, que chegara na véspera à noite de Coimbra, passara
a manhã a consertar o cadafalso com o ajudante e um carpinteiro da
terra, que se oferecera de bom grado pelo regalo de ver o malan-
drim d
ançar na corda bamba. De resto, nada mais sumário que a for-
c
a: um barrote firmado por duas cavilhas ao alto de dois postes de
pinh
o, com uma sorte de estrado móvel no pé, ao qual teria de subir
o
sentenciado no acto de se lhe passar o laço ao pesco. A corda,
uma corda de encarrar, cedida pela filha do Gomes - a única sobre-
vivente da família -, pendia agitada pelo ventinho de cantaril, tal
o baloiço da barra em trapézio.

As peripécias da execução decorreram como estava previsto.

A um sinal dado rufaram os tambores e, empurrado pelos dois bele-
guins, que eram forçudos, o Pires trepou para o estrado. Mas para lhe
caçar
em o pescoço no laço foi obra. O miserável debatia-se com to-
das as
veras, ora ladeando, ora refugindo com o corpo à retaguarda,
a cab
eça recolhida para os ombros como carneiro marruá. Mas o car-
rasc
o tinha a experiência daqueles breque festas e respectivas manhas.
Quando menos se esperava, filou o Pires pelo cachaço e, passando-
-lhe
a corda, deu o esticão. Em continente o ajudante safou o estrado
ao
passo que ele, dum pulo, se bifurcava nos ombros do condenado.

- Dá-me a bagaceira! - disse então para o ajudante.

Este passou-lhe uma cabaça, que levou aos lábios de rosto folga-
o, lá porque estivesse satisfeito com o fim da funçanata e lhe desse
a gana de zombar do justiçado, ou porque sentisse necessidade de se
t
emperar contra a cacimba que picava como mil alfinetes. Não bebeu
dois tr
agos. Rebentou tal motim na turbamulta, gritos, descompassa-
dos, injúrias
, objurgações, que se suspendeu interdito. Viu muitos
braços e
rguidos para ele a ameaçar, muitas bocas escancaradas no cla-
mor, e julgou que era a quadrilha do Pires, consoante fora pregoado,
que inv
estia. A cabacinha, escapulindo-se-lhe das mãos, veio esca-
queirar-se no chão. E, sem se importar mais com o penitenciado que
esperne
ava, língua de palmo fora da boca, atirou-se abaixo e fugiu.

A cena foi tão rápida como a mão dum homem se abre e se fe-
cha, e quase inconcebí
vel!

Afinal que se havia passado? Nada e tudo. A irreverência do car-
rasco, bem embora se tratasse dum infamíssimo matador, seu desejo
e impiedade geraram a revolt
a no fundo de respeito, sagrado respeito,
daquelas consciências simples perante a representação pavorosa da
morte. Àquela altura do drama humano não há ninguém que se man-
tenha em seu sangue-frio, que mais não seja pelos reflexos que com-
porta. Muito mais naquele caso em que ao mistério imprescrutável do
d
estino individual se associava a fera intervenção da lei.

Sua mulher Rita de Jesus, que acoimavam de enganar o homem,
apareceu a reclamar o corpo no acta da execução. E, se bem que um
sorriso sardónico aflorasse aos lábios de muitos dos circunstantes, tal

movimento foi muito apreciado.          .

Meteram o cadáver no esquife da irmandade e aos ombros de
quatro homens d
e boa vontade levaram-no para a igreja. Já ali esta-
vam paramentados o reitor e muitos párocos das freguesias limítro-
fes, Arcozelos, Faia, Freixinho, Carregal, Vila da Ponte, Caria e até de
Pêra Velha e outras igrejas da serra. E, solenemente, celebraram pelo
eterno descanso do executado o ofício de corpo presente, após o que
foi dado à terra no próprio chão da igreja matriz, cobrindo-se a se-
pultura com a lousa que nivela os mortos.

 

 

 



publicado por Dito assim às 19:12
link do post | comentar | favorito

Junho 2016
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4

5
6
7
8
9
10
11

12
13
14
15
16
17
18

19
20
21
22
23
24
25

26
27
28
29
30


posts recentes

O REAL QUOTIDIANO

Vendidos, sempre houve

Mais uma crónica de Antón...

ENSINAR, COMOVER E DELEIT...

A Rendição de Breda de Ve...

Alguns quadros de cinismo...

"Somos todos felizes outr...

OS NEGÓCIOS E A SUBSERVIÊ...

Em Guimarães no Toural em...

O 25 DE ABRIL DE 2016

arquivos

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Fevereiro 2016

Agosto 2015

Julho 2015

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Março 2014

Outubro 2013

Junho 2013

Maio 2013

blogs SAPO
Este Blogue é completamente ... ...Alérgico ao Acordo Ortográfico