O soldado sobraçou-o pela ilharga e ele, empertigando-se todo,
prosseguiu no caminho, Ouviria os pardais chilrear nos telhados. Tal-
vez reparasse que passavam no céu pombas amorosas. O Sol apare-
cera por detrás de nuvens de neve, esfarripadas e veleiras, um instan-
te, dois instantes, e desistira de raiar. Mais dum soprava às mãos
encanhotadas. Tanto a população da serra como a do vale, atraida pe-
lo espectáculo insólito, afluíra à Rua. As mães - costumeira edifican-
te, recomendada aos fiéis como ouvir a santa missinha, acompanhar
o Senhor fora, visitar os encarcerados - vinham com os filhos ao
colo para que, mirando-se com olhos inocentes naquele espelho, se
lembrassem quando dele fossem grandes.
O campo em que haviam montado o patíbulo, encostado à vila,
pertencente a um Manuel Teles, do Prado, estava coalhado de gente.
Quem era novo, tanto moços como moças, grimpara para os castanheiros
e árvores de caroço, que ali havia, e a carga era tal que as per-
nadas dobravam.
O carrasco, que chegara na véspera à noite de Coimbra, passara
a manhã a consertar o cadafalso com o ajudante e um carpinteiro da
terra, que se oferecera de bom grado só pelo regalo de ver o malan-
drim dançar na corda bamba. De resto, nada mais sumário que a for-
ca: um barrote firmado por duas cavilhas ao alto de dois postes de
pinho, com uma sorte de estrado móvel no pé, ao qual teria de subir
o sentenciado no acto de se lhe passar o laço ao pescoço. A corda,
uma corda de encarrar, cedida pela filha do Gomes - a única sobre-
vivente da família -, pendia agitada pelo ventinho de cantaril, tal
o baloiço da barra em trapézio.
As peripécias da execução decorreram como estava previsto.
A um sinal dado rufaram os tambores e, empurrado pelos dois bele-
guins, que eram forçudos, o Pires trepou para o estrado. Mas para lhe
caçarem o pescoço no laço foi obra. O miserável debatia-se com to-
das as veras, ora ladeando, ora refugindo com o corpo à retaguarda,
a cabeça recolhida para os ombros como carneiro marruá. Mas o car-
rasco tinha a experiência daqueles breque festas e respectivas manhas.
Quando menos se esperava, filou o Pires pelo cachaço e, passando-
-lhe a corda, deu o esticão. Em continente o ajudante safou o estrado
ao passo que ele, dum pulo, se bifurcava nos ombros do condenado.
- Dá-me a bagaceira! - disse então para o ajudante.
Este passou-lhe uma cabaça, que levou aos lábios de rosto folga-
zão, lá porque estivesse satisfeito com o fim da funçanata e lhe desse
a gana de zombar do justiçado, ou porque sentisse necessidade de se
temperar contra a cacimba que picava como mil alfinetes. Não bebeu
dois tragos. Rebentou tal motim na turbamulta, gritos, descompassa-
dos, injúrias, objurgações, que se suspendeu interdito. Viu muitos
braços erguidos para ele a ameaçar, muitas bocas escancaradas no cla-
mor, e julgou que era a quadrilha do Pires, consoante fora pregoado,
que investia. A cabacinha, escapulindo-se-lhe das mãos, veio esca-
queirar-se no chão. E, sem se importar mais com o penitenciado que
esperneava, língua de palmo fora da boca, atirou-se abaixo e fugiu.
A cena foi tão rápida como a mão dum homem se abre e se fe-
cha, e quase inconcebível!
Afinal que se havia passado? Nada e tudo. A irreverência do car-
rasco, bem embora se tratasse dum infamíssimo matador, seu desejo
e impiedade geraram a revolta no fundo de respeito, sagrado respeito,
daquelas consciências simples perante a representação pavorosa da
morte. Àquela altura do drama humano não há ninguém que se man-
tenha em seu sangue-frio, que mais não seja pelos reflexos que com-
porta. Muito mais naquele caso em que ao mistério imprescrutável do
destino individual se associava a fera intervenção da lei.
Sua mulher Rita de Jesus, que acoimavam de enganar o homem,
apareceu a reclamar o corpo no acta da execução. E, se bem que um
sorriso sardónico aflorasse aos lábios de muitos dos circunstantes, tal
movimento foi muito apreciado. .
Meteram o cadáver no esquife da irmandade e aos ombros de
quatro homens de boa vontade levaram-no para a igreja. Já ali esta-
vam paramentados o reitor e muitos párocos das freguesias limítro-
fes, Arcozelos, Faia, Freixinho, Carregal, Vila da Ponte, Caria e até de
Pêra Velha e outras igrejas da serra. E, solenemente, celebraram pelo
eterno descanso do executado o ofício de corpo presente, após o que
foi dado à terra no próprio chão da igreja matriz, cobrindo-se a se-
pultura com a lousa que nivela os mortos.