Literatura, opiniões, memórias, autobiografias, e demais diletantices.
Quinta-feira, 12 de Maio de 2016
Alguns quadros de cinismo político

O meu avô, administrador de quintas no Douro, foi colega de carteira de José Domingues dos Santos, que chefiou o ministério republicano de 1924 – um prodígio de radicalismo favorecido pelo presidente incumbente, Manuel Teixeira Gomes. O objectivo de Domingues dos Santos era o de "controlar o défice", galopante e desgovernado, mas também o de exercer um "controle mais exigente" sobre o país. Só isso explica que, em vez de acumular a chefia do governo com a Fazenda, tenha preferido a pasta do Interior, que dizia respeito às polícias e à vigilância. Durou três ou quatro meses; durante esse período, uma milícia republicana assaltou o escritório do meu avô. Foi uma operação despropositada; o meu avô era um homem cordato e discreto. Guerra Junqueiro, que morrera no ano anterior, em 1923, recebia-o na Quinta da Batoca, em Barca d’Alva, onde se dedicavam à contemplação dos crepúsculos, a diálogos sobre o míldio, à contabilidade – e, uma vez ou outra, à comunhão que podia existir entre dois homens desiludidos: Guerra Junqueiro, com a República; o meu avô, com a oposição ao regime e a possibilidade de implantar o "sistema inglês".

 

A ideia de importar o "sistema inglês" era impossível de concretizar: faltavam recursos, faltava uma nobreza séria, faltava a monarquia e, naturalmente, faltava a Inglaterra. O velho Doutor Homem, meu pai, prolongou o desvario: detestava o dr. Salazar, julgava-se um conservador do Surrey, lia o ‘Daily Telegraph’ e citava Benjamin Disraeli num país que tinha sobrevivido a uma guerra, ao constitucionalismo e à ditadura republicana, sem falar do mau feitio da Tia Benedita, a matriarca miguelista da família, que até a morte vir buscá-la temeu o regresso de Afonso Costa para roubar as igrejas e instalar bolchevistas nas comarcas do Minho.

 

Não houve nenhuma catástrofe. O ministério de Domingues dos Santos pediu desculpas ao meu avô pelos abusos dos milicianos. O dr. Afonso Costa morreu em França, e o Tio Henrique (o melómano dos Arcos de Valdevez) chegou a imitar- -lhe vagamente a barbicha para assustar a Tia Benedita. O meu avô sobreviveu à fuga dos ingleses do Douro. O velho Doutor Homem, meu pai, insistia que de vez em quando era preciso um governo de esquerda para que se instalasse a esperança de uma normalidade futura. Ele tinha lido Lampedusa; o mundo não o surpreenderia.


(Do Correio da Manhã - Crónicas de um reacionário minhoto em Moledo).  



publicado por Dito assim às 20:10
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